Terça-feira, 22 de Abril de 2008
O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
a me parece que se chama sável
Mas desenham elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
BELO, Ruy; País Possível (1973)
Quinta-feira, 17 de Abril de 2008
Isto de ser poeta e português
Não é tão simples como imaginais.
Vede em Camões, Antero e Pascoaes
O que essa estrela dúplice lhes fez.
É uma f'rida que não sara mais
A que fizera luz que alguma vez
Aureolou as frontes desses três
E doutros, cujas vidas ignorais:
Gomes Leal, Cesário Verde... tantos!
Se fossem doutro povo, doutra raça,
Seriam geniais, - mas sem desgraça.
Os poetas, aqui, são como os Santos:
Não conhecem os frutos dos seus prantos
E a glória é póstuma ilusão que passa.
QUEIROZ, Carlos; Epístola aos Vindouros e Outros Poemas
Segunda-feira, 14 de Abril de 2008
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática
Sexta-feira, 11 de Abril de 2008
XXIV
O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática
Quinta-feira, 10 de Abril de 2008
XXXIX
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:-
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática
Segunda-feira, 7 de Abril de 2008
Que tenha nascido em Londres,
Paris, Rússia ou Japão
Toda a gente tem apenas
Um e um só coração.
Porque no mundo inteiro
Acredita e ouve bem
Com mais de um coração
Nunca existiu ninguém.
No corpo de todos nós
Eu sou único e sozinho
Portanto, tratem-me bem
Com juízo, com carinho!
Álcool e gorduras
Açúcar e sal
Não me dêem disso
Porque me faz mal.
Quero água da boa
E pouco café
Gosto de ar puro
E de andar a pé.
Fumo? Nem pensar
Pois fico doente
Vegetais e fruta
Quero sempre, sempre.
A droga é flagelo
Que me faz sofrer
Tenham dó de mim
Não queiram morrer!
Sê alegre, brincalhão
Feliz sem adoecer
Se seguires os meus conselhos
Terás saúde a valer.
Isabel Lamas
Conselhos do Instituo Nacional de Cardiologia Preventiva de Lisboa
Quinta-feira, 3 de Abril de 2008
XXVIII
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro;
Senão não era Natureza.
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática
Domingo, 30 de Março de 2008
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…
Por isso ele nunca tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática
Sábado, 29 de Março de 2008
A NOSSA CANTIGA
Caneças dos aguadeiros
E das lindas lavadeiras,
Nós já fomos os primeiros
Cá nas nossas brincadeiras!
Caneças, os teus viveiros
Com os hortos, à mistura,
Mostram-nos lindos canteiros
trabalhados, com ternura!
Caneças, tuas cantigas
São cantadas com amor,
Como quando as raparigas
Vão colher uma flor!
Caneças, sempre a viver
Uma fonte, em cada canto,
Continuas a crescer
Nunca perdes o encanto!
Caneças, linda e ladina,
Como tu não há igual,
És antiga, mas menina
Cá no nosso Portugal!
Quarta-feira, 26 de Março de 2008
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como no malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
( Pensar é estar doente dos olhos )
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...
Alberto Caeiro, in Poemas, Ed. Ática